Por: Emílio Jovando
O Panafricanismo, concebido no final do século passado e o movimento da Negritude no séc. XX, enquanto conceitos político-culturais globais de exaltação da personalidade africana e pleito pela causa do homem negro tiveram, no mundo pós segunda guerra mundial, grande repercussão por toda a África, pois foram os rastilhos que incendiaram a consciência dos nacionalismos africanos. Neles, cultura e revolta estiveram estreitamente associados e o seu sucesso foi tanto maior quanto os seus arautos possuíam a cultura e a língua do colonizador e as utilizaram como armas contra o próprio colonizador.
África é um imenso continente e possui uma enorme heterrogeniedade étnica, pelo que é preciso evitar generalizações tanto na avaliação dos problemas como ao sugerir soluções. África possui uma rica variedade de valores culturais e de estimável qualidade humana que pode favorecer a humanidade inteira. Os Bispos Católicos Africanos, no Sínodo dos Bispos Africanos apontam os seguintes valores positivos africanos: o sentido do sagrado e do espiritual, o valor da família, o respeito e amor pela vida e pelos antepassados, a rejeição da ideia de aniquilar a vida, a solidariedade, a vida comunitária e a herança tradicional que privilegia o colectivo, em vez do individualismo, (João Paulo II, 1995:47).
Durante muito tempo, o continente africano foi visto como uma sociedade sem história, sem cultura, sem civilização. Na sua obra “Filosofia da História” (1830), Hegel declara que África não é parte da história do mundo, não tem movimentos nem progressos históricos próprios dela, porque nela não houve a manifestação do Espírito Absoluto. Em 1957, Padre Gaxott escreveu: estes povos, referindo-se aos povos africanos, nada deram à Humanidade.
Hantington (1993:22), no seu artigo “The Clash of Civilizations?”, ao dizer que o mundo pós guerra-fria será multipolar e multicivilizacional onde os blocos de países serão reunidos segundo a identidade cultural e a partir da interacção de sete ou oito civilizações: ocidental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslavo-hortodoxa, latino-americana, e, possivelmente africana. Esta visão do autor mostra um certo cepticismo e põe em causa a existência de uma civilização africana.
Ao olharmos para as bases da axiologia africana, verificamos que estão assentes no desenvolvimento espiritual e metafísico e não material, como o Mundo Ocidental; estamos perante um desenvolvimento espiritual da vida, da acção, da intuição, da vontade, do ser e dos valores, apelando para actividade espiritual não redutíveis à razão e a elas atribuindo um alcance metafísico, isto é, a capacidade de colher as profundezas e a essência da vida e do real, ideias também defendidas por Espiritualistas Ocidentais como Maurice Blondel, Henri Bergson, Félix Ravisson, Charles Renouvoir, Jules Lachelier, Emile Bouttroux e os Neotomistas.
Nos nossos dias, o continente está sendo influenciado pelo processo da globalização e regionalização, ocidentalização e está experimentando a modernização, democratização e inserção internacional, que duma ou doutra forma põe, em causa a sua identidade, não obstante que África ainda ocupa um lugar marginal nas relações internacionais e ainda é ofuscada devido ao egoísmo e ambição de uns e erros de outros.
Quando olhamos para matriz conceptual e axiológica da realidade africana, vemos que ela esteve sempre assente na teleologia, deontologia e escatologia, buscando uma saída para um lugar no seio da ordem internacional, com uma identidade política, económica, cultural e religiosa própria. África é uma das regiões do mundo que, historicamente, mais esteve próxima às tentações de interpretações apaixonadas acerca das relações entre passado e futuro.
Escrutinada sob as ópticas da teleologia, da deontologia e da escatologia, às vezes simultaneamente, o continente africano segue sendo um lugar para o teste da razão crítica contra o monumento de preconceitos que foram erigidos pela fraca ciência e pela opinião desinformada. Sendo assim, urge questionar: como construir uma identidade africana se é que ela ainda não está construída? Como consolidar a identidade africana construída ao longo do tempo pelos líderes africanos? Qual deve ser a posição do africano, na construção da sua identidade, tendo em conta o fenómeno da globalização: recour á noutre authentité or retour á noutre authentité?
O continente africano limita-se ao norte pelo Mar Mediterrâneo, ao oeste pelo Oceano Atlântico e ao leste pelo Oceano Índico. De uma maneira simplista, podemos dividir em duas zonas absolutamente distintas: centro-norte que é dominado pelo imenso deserto de Sahara (8.600.000 Km2), enquanto que o centro-sul, depois de percorrer savanas, é ocupado pela floresta tropical africana.
Esta separação geográfica também reflectiu-se numa separação racial. No norte do continente habitam os árabes, berberes e os tuaregues, sendo esses dois últimos os que praticam o comércio transahariano. No centro-sul, habitam mais de 800 etnias negras africanas. Esta diversidade étnica leva-nos a afirmar com Paulo VI (1967:6) na sua Mensagem apostólica Africae Terrarum, citada por João Paulo II (2000) na sua Exortação Pós Sinodal Sobre a Igreja em África, que África é um continente imenso e com situações muito diversas, onde é preciso evitar generalizações na avaliação de problemas assim como ao sugerir soluções.
Em África, não só há uma necessidade de uma identidade africana, mas também uma nova procura de Estado, uma vez que no continente, os Estados não nasceram da dinâmica interna, mas sim foram importados, ready made, pelas potências colonizadoras.
Após muitos anos de independência de vários Estados africanos, a identidade individual, o cidadão, a identidade colectiva e o Estado são dois elementos importantes que devem existir antes de falar de uma identidade africana na escala continental e são elementos indispensáveis para a resolução de conflitos. É o que está a acontecer no Sudão, onde apesar dos acordos assinados, não se consegue construir a paz no Darfur, porque não existe um sentido de identidade nacional nem um sentido de identidade comum em as partes conflituantes.
Na Conferência Internacional sobre Cursed by Riches: Resourses and Conflicts in Africa realizada em Nairobi (2007) decidiu-se que para criar uma identidade africana ou qualquer que seja, não há uma receita fácil, mas o caminho parece estar na mobilização da sociedade, os meios de informação para a consciencialização da necessidade da edificação de uma identidade africana autóctone. Mas o continente ainda carece de verdadeiros líderes como os que idealizara a libertação do continente, ou melhor, há um exemplo extraordinário, como Nelson Mandela, depois há um vazio enorme, (Sesana, 2008:42-43).
A falta de uma identidade africana consolidada, a fraqueza das instituições e a falta de uma liderança interessada no assunto fragilizam o continente quando posto a prova com o fenómeno da globalização, crescente interdependência e outros elementos identitários de outras culturas que põem em causa a identidade africana. Se não se mudar a dinâmica e o comportamento africano face a estes fenómenos, pensar que África possa um dia erguer-se das sequelas do passado colonial será sempre uma utopia.
Um dos líderes africanos perguntou: o que é ser africano? Mas para sabermos que nós somos, é importante perguntar: de onde viemos, onde estamos e para onde vamos? Essas três perguntas nos remetem a uma reflexão existencialista, que, por sua vez, nos remete as três dimensões do tempo: passado, presente e futuro.
África, sendo um continente imenso continente, possui uma heterogeneidade étnica enorme, mas esta heterogeneidade dever ser vista como sendo uma rica variedade de valores culturais e deve ser vista como uma estimável qualidade humana que pode favorecer o progresso da humanidade inteira. O importante é ter a capacidade de manter um diálogo entre os diferentes seguimentos identitários dos diferentes países africanos.
Os valores positivos africanos como é o caso do sentido do sagrado e do espiritual, o valor da família, o respeito e amor pela vida e pelos antepassados, a rejeição da ideia de aniquilar a vida, a solidariedade, a vida comunitária e a herança tradicional que privilegia o colectivo, em vez do individualismo, devem ser o móbil para a construção da identidade africana. A ideia de que o continente africano é uma área sem história, sem cultura, sem civilização e que os povos africanos nada deram à Humanidade é falaciosa. A compreensão da identidade africana não é tarefa fácil, porque o continente africano é fragmentado em inúmeras etnias que ainda não se encontram uma paz e harmonia social efectiva.
O colonialismo influenciou negativamente na identidade africana, porque criou um complexo de inferioridade que se instalou na cultura africana e em contra partida postulava a valorização dos hábitos e costumes europeus, como sinal de progresso e igualdade. Mas, o Panafricanismo, a Negritude e outros elementos constituíram um grupo de factores internos e externos contribuíram para a ideia da necessidade de formação da consciência de uma identidade africana no período colonial e depois das independências africanas. O Panafricanismo e a Negritude foram o ideal em torno do qual a identidade africana foi forjada, no período da transição do colonialismo para as independências. Foi uma construção necessária para gerar o orgulho da raça negra, criando autonomia e liberdade continental.
Com a globalização e constante contacto entre as culturas, os vários desafios apresentados à identidades africana devem ser enfrentados recorrendo aos valores centrais da identidade africana. Neste processo, tendo em conta a heterogeneidade étnica do continente africano e as influências das outras culturas e civilizações, é imperioso que os africanos sejam eles mesmo, sendo outros, ou seja, que sejam eles mesmos, não obstante que tenham elementos culturais e identitários de outras culturas.
REFERÊNCIAS
1. Huntington, Samuel (1993), The Clash of Civilization, Foreign Affairs, Vol. 72, N˚3.
2. João Paulo II (1995), Igreja em África: Exortação Pós-Sinodal Sobre a Igreja em África e a Sua Missão Envangelizadora Rumo ao Ano 2000, Vaticano.
3. L’Observatore Roamano (1994), Relatio Ante Disceptationem, N˚ 4, Abril, Vaticano, Roma.
4. Fanon, Frantz (1961), Os condenados da terra, Edições Ulisseia, Lisboa.
5. Sesana, Renato Kizito (2008) Recursos e Conflitos, Revista Missionária Além-Mar, Nº566, Ano LI, Janeiro, Lisboa.