segunda-feira, 23 de junho de 2008

DA GEOPOLÍTICA À GEOVERNAÇÃO HUMANA DE RICHARD FALK

A geogovernação, ou seja, as propostas, projectos de criação duma espécie de governo mundial, historicamente baseado em ideais de tipo universalista, e apresentados sob as mais diversas formas, no âmbito das Nações Unidas, ou em meios políticos e intelectuais que lhes são mais ou menos próximos, tiveram um renovado impulso com o fim da Guerra Fria. Dentro das múltiplas propostas, projectos de geogovernação oriundas de diversos quadrantes, uma das mais importantes e ambiciosas é a “governação humana” do professor de Direito Internacional da Universidade de Princeton, Richard Falk, que foi o relator da iniciativa para Civilização Global, desenvolvida no âmbito do World Order Models Project (WOMP), um projecto que envolveu diversas personalidades académicas, activistas políticos e jornalistas representantes de diversas sensibilidade religiosas e culturais a nível mundial, desenvolvido durante mais de duas décadas e laureado pela UNESCO com o Prémio da Educação Para a Paz, intitulado On Humane Governance, Toward a New Global Politics (1995).

A governação humana de Falk é, simultaneamente, um processo e um objectivo. No essencial, esta consiste em implementar novas formas de governação à escala mundial, que permitam garantir um conjunto abrangente de direitos de todos os povos da terra, devendo nesta construção, ser dada prioridade aos mais frágeis e objecto de abusos. Esta proposta que pode ser qualificada como imbuída duma visão construtivista, no sentido de Nicholas Onuf (1989) e Alexander Wendt (1999) dão ao termo na disciplina, pressupõe, também, como objectivos, o respeito pela qualidade do ambiente que condiciona a saúde e vida humana e o bem-estar económico e social das populações. Richard Falk acredita também que, por esta via, será possível aumentar o nível de segurança humana, evitar conflitos e estabelecer ordem a nível internacional, com um recurso mínimo a meios de coação e à violência. Segundo este, o que se impõe também é um desmantelamento progressivo das componentes materiais, armamento, e mentais, cultura de violência, do actual sistema geopolítico, as quais favorecem os conflitos, o uso da violência e a guerra.

Na concepção falkiana, a geogovernação não é um processo que envolve somente Estados ou uma entidade de tipo supranacional criada por estes, como nas propostas governação mundial clássica, dos anos 40 e 50 do século XX, mas um processo bastante mais alargado e complexo que envolve uma acção concertada entre actores westifalianos e não westifalianos , do tipo governação global sistémica, para a qual não existe propriamente um modelo pré definido. Apesar deste poder parecer mais um projecto desfasado da realidade da política mundial e da sua complexa teia de interesse, importa notar que Falk tem plena consciência da magnitude do processo e do objectivo que propõe, bem como das dificuldades das tarefas associadas à geogovernação, seja qual for a forma de que esta se possa revestir, não tendo dúvidas em afirmar que é muito improvável que surja algum consenso sobre esta via, bem como sobre as principais características que esta deve apresentar, pelo menos durante os próximos 25 anos..

O que Falk considera fundamental é que exista um progressivo empenho das elites políticas dirigentes nessa via transformadora, ou construtivista, num rótulo mais académico que ele designa por uma janela de oportunidade normativa, e que as elites dirigentes ultrapassem a sua tradicional atitude ideológica e epistemológica favorável ao realismo político, sobretudo em matéria de política externa, a qual só contribui para perpetuar os egoísmos e os conflitos políticos e militares do passado.


A visão construtivista: A Governação Humana e o Governo da Globalidade

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A NATUREZA DOS FENÓMENOS RELIGIOSOS

Os fenómenos religiosos agrupam-se em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As primeiras são estados de opinião e consistem em representações, os segundos são modos de acção determinados. Entre estas classes de factos existe toda a diferença que separa o pensamento do movimento.

Os ritos só podem definir-se e distinguir-se das outras práticas humanas, nomeadamente das práticas morais pela natureza pela natureza especial do seu objecto. Com efeitos uma regra moral prescreve-nos, tal como um rito, maneira de agir, mas que se dirigem a objectos de um género diferente. É portanto o objecto do rito que é preciso caracterizar. Ora, é través da crença que a natureza especial deste se exprime. Só podemos definir o rito após ter definido a crença.

Todas as crenças religiosas conhecidas, quer simples quer complexas, apresentam um mesmo carácter comum: supõem uma classificação das coisas reais ou ideias, que os Homens fazem representações, em duas classes ou géneros apostos, designados geralmente por dois termos distintos que se traduzem bem pelas palavras « profano » e « sagrado ». A divisão do mundo em dois domínios compreendendo, um tudo o que é sagrado, outro que é profano, tal é a característica distintiva do pensamento religioso.

A tradicional oposição entre o bem e o mal nada é ao lado desta: porque o bem e o mal são duas espécies contrárias de um mesmo género, a saber, moral, com a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferentes de uma mesma ordem de facto, a vida, enquanto o sagrado e o profano foram sempre, e em toda a parte concebidos pelo espírito humano como géneros separados, como dois mundos entre os quais nada há de comum.

Émili Durkheim: Les formes élémentaires de la religieuse, Paris, P.U.F, Páginas: 50-53.

SECULARIZAÇÃO E RESSACRALIZAÇÃO


Verifica-se que alguns países, embora a população considere-se religiosa e mesmo católica, uma grande maioria a assumir-se como não praticante. A religião proporciona uma reintegração dos indivíduos no todo universal, cosmo ou natureza, essa reunião operacionaliza-se através dos ritos, onde as pessoas dizem-se religiosas mas não praticantes. Temos aqui uma matéria para reflectir bastante. Para compreender este fenómeno de secularização das sociedades é preciso considerar alguns dados da história.

O termo secularização deriva de séculos que é uma palavra que servia para distinguir outrora o Profano do Sagrado, exemplo, havia duas classes de sacerdotes: os Seculares, dedicados à pregação e a evangelização das populações e os Frades ou Monges, de ordens monásticas, que viviam numa espécie de reclusão voluntária, longe do século, dedicados à oração, à meditação e aos estudos. O clero secular vivia no profano, tentando trazer os indivíduos ao sagrado, e o clero monacal vivia num espaço já sagrado convento, mosteiro.

Depois da conversão do imperador Constantino (século II. d.C.) e do cristianismo ser transformado em religião oficial do império Romano, é natural que as atitudes assumidas pelo clero e pela sua hierarquia tivessem grande repercussão nos domínios da actividade das populações do Ocidente, numa subordinação do profano ao sagrado. A igreja intervinha em todos os aspectos da vida profana dos povos.

No entanto, se a Igreja teve uma papel positivo na preservação das ideias humanistas e transformadoras, nem sempre foi eficaz e capaz de acompanhar as transformações do século, entretanto, muitas vezes em conflitos com as novas ideias e aspirações das populações. Houve muita intolerância religiosa que a inquisição, com a sua longa lista de horrores, introduziu na vida quotidiana dos lugares onde esta foi implantada, perseguindo os intelectuais humanistas. A inquisição matou na fogueira milhares de pessoas, outras doentes mentais acusados de possessão demoníaca, astrólogos e videntes dissidentes do pensar chamados hereges e inimigos dos órgãos do poder.

Entre os célebres casos, encontram-se os de Giordano Bruno, monge e filósofo dissente, morto na fogueira, e de Galileu Galilei, encarcerado até ao fim da sua vida por ter defendido o modelo do universo chamado Heliocêntrico, contra o modelo Geocêntrico defendido pelo magistério da Igreja. O século, o profano, reagiu com novas ideias, mais intensamente desde o século XVII, e a modernidade desenvolveu novas concepções e novas propostas de explicação da realidade mais assentes na razão humana que na fé religiosa. Assim, houve um progressivo movimento para a secularização. Tudo isto, acompanhado pelas realizações técnicas de uma indústria nascente, deu origem a uma nova mentalidade que julgava poder substituir o paraíso do céu por um paraíso na terra, no caso do sistema comunista, que defendia a construção de uma sociedade sem classe, onde reinaria a fraternidade e a igualdade, no caso do sistema capitalista, a sociedade de prazer sem limites onde todos os desejos se podiam satisfazer seria o modelo de vida, e isso criou a actual sociedade de consumo.

Assim, abriu-se um conflito entre a religião e a ciência, entre o conservadorismo e a inovação, parecendo que as mentalidades se foram secularizando, tornando-se laicais ou anti-clericais, voltando as costas ao religioso, ao clero, à igreja, aos ritos religiosos, etc., . Os interesses dos indivíduos voltaram-se para aqui e para o agora; a felicidade passou a ser sinónimo de bem-estar material. Entre os pensadores que contribuíram para o debate filosófico em torno da religião encontram-se: Karl Marx (1818-1883); Friedrich Nietzsche (1844-1919); Sigmund Freud (1856-1936), entre outros.

Karl Marx, fundador do materialismo histórico, definiu a religião como sendo o ópio do povo ao afirmar que a religião tinha como função alienar e adormecer as classes trabalhadoras, prometendo-lhes um paraíso como esperança compensadora para as terríveis condições de vida que tinham de suportar. Compreende-se, pois, que Max propusesse uma revolução política e social. Aliás, a Igreja também reagiu à situação através da célebre Encíclica do Papa Leão XII, definindo uma doutrina social da igreja.

Friedrick Nietzsche, acérrimo crítico da filosofia e da religião cristã, que considerava uma ideologia de fracos e de escravos, dizia que o cristianismo estava contra a vida, a natureza. O Homem deveria transformar a sua condição de escravo em super-humano, de home-camelo para homem-leão, libertando-se das cadeias da religião, chamando a si a responsabilidade da sua vida e da sua acção para a “morte de Deus”.

Sigmund Freud, médico psiquiatra, criou um novo método de análises dos fenómenos psicológicos. Após constatar a existência de uma actividade psíquica de natureza inconsciente, afirmou que muitas das criações da nossa mente são disfarces para problemas psicológicos não resolvidos que nos perturbam. Entre estas criações, Freud inclui Deus-Pai que considerou uma projecção da figura do pai biológico e psicológico, negando-lhe portanto qualquer realidade objectiva sobrenatural.

As críticas à religião também vieram do lado da ciência. Devido à dificuldade que a Igreja teve em aceitar as novas propostas de explicação das realidades feitas pelos cientistas, e pela atitude da inquisição relativamente a Galileu e a outros intelectuais e cientistas, sobretudo os teóricos da revolução francesa. A actividade científica criou um prestigio crescente chegando-se a pensar que a nova religião era a ciência e a sua deusa a razão. Nos EUA foi criada uma religião chamada Igreja da Cientologia que transformou Albert Einstein no seu “Santo Principal”.

Tal oposição, religião – ciência, não tem sentido. É claro que o que a ciência sempre combateu não foi a religião mas sim a superstição. Ora, também a religião deve estar interessada em combate-la a mesma superstição. Aparentemente, as pessoas esclarecidas pela divulgação da ciência já não aderem à crenças nem às superstições. Só que o fenómeno levado a cabo em países desenvolvidos revelam que as pessoas: não acreditam na ressurreição de Cristo, mas correm para assistir programas de televisão sobre a comunicação com os mortos; recusam o mistério do divino e do sagrado, mas a série americana X-Files sobre o misterioso e os extraterrestres tem enorme sucesso de audiência; não acreditam em milagres, mas correm a bruxos e bruxas, videntes e adivinhos para conhecer o futuro; ainda mais, a atitude das pessoas nos centros comerciais é a atitude de devoção à mercadoria e busca ansiosa de entrada no paraíso do consumo. E, por exemplo, a respeito dos desportos radicais, o risco de vida que aí existe envolve uma desesperada tentativa de superação de si, de salvação ou redenção de um quotidiano cinzento, revela a busca de um sentido para a existência através da superação da limitada condição humana. Não será que o praticante desses desportos torna-se uma espécie de heróis? Como interpretar tudo isto? Terá Deus morrido, como defendia Nietzsche, ou terão o sagrado e o espiritual ressuscitado, embora à custa da morte das formas tradicionais de religiosidade?

É óbvio que o sucesso profissional, amoroso, financeiro, material, embora necessário, não é suficiente para nos realizar. Parece que assistimos a uma ressacralização do real. Estamos perante, por um lado, a irrupção de movimentos que apelam à tolerância e por outro, a eclosão de conflitos político-sociais provocados por sentimentos de intolerância e fanatismo. Tal parece revelar o renascer de uma profunda espiritualidade sob uma forma laica, a preparação do terreno para a emergência de uma nova flor religiosa.

As permutas existentes nas diversas religiões institucionalizadas, o confronto dos credos, os problemas que se colocam a todas as confissões religiosas, os novos medos: SIDA, Terrorismo, fim do mundo, cataclismo ecológico, etc., que criam uma insatisfação profunda que nos faz sonhar com um novo mestre espiritual capaz de nos ajudar a enfrentar os novos desafios. Se as pessoas não sabem bem quem é Jesus, não vão à missa, e não se reconhecem em muitas das posições da igreja, no entanto aspiram profundamente a uma nova vinda de Cristo.
Emílio Jovando, Dimensão Religiosa, 2008