sábado, 17 de maio de 2008

QUAIS SÃO OS VALORES POSITIVOS CONTEMPORÂNEOS

No passado, os homens e as mulheres tinham certezas religiosas e morais. Toda a vida individual e social estava organizada em redor dessas crenças sagradas. As grandes revoluções culturais contemporâneas, a libertação sexual e o feminismo, fizeram desaparecer muitas crenças e muitas normas consideradas imutáveis. As normas morais perderam o seu carácter absoluto e vinculativo, tornaram-se como leis do Estado: regras práticas para impedirem condutas prejudicais para conciliarem interesses individuais e colectivos.

Já não existem tábuas de leis absolutas. Muitos pensam, depois de Nietzsche, que os conceitos de bem e de mal se estão a desvanecer, tal como a ideia de demónio e de tentação. Muitos pensadores progressistas, hoje, triunfam, mas como que despojados de valores. A realidade ensina a não ser fanáticos, a ser tolerante, racional. Mas ao fazê-lo, aceita um pouco de tudo: o consumismo, a superficialidade da moda, o vazio da televisão. Sobretudo não consegue-se fazer despontar, nos indivíduos, uma chama que vá para além do mero bem-estar, um ideal que supere o horizonte de uma melhor distribuição dos rendimentos. Não criam-se metas, não suscita-se crenças. Não sabe-se fornecer critérios do bem e do mal, do justo e do injusto. Desta forma, tudo se reduz baseando-se na mera opinião e na convivências pessoais.

Isto é que os filósofos, os sociólogos e observadores críticos continuam a dizer do nosso mundo. Não restam dúvidas de que, em boa medida, as suas observações têm fundamento. Mas, em nosso entender, não tomamos em consideração os valores positivos do mundo moderno, a sua moralidade específica, e isso prejudicam-nos. Importa-nos a observação de alguns factos. A nossa sociedade tem muitos valores reconhecidos, partilhados, não discutidos. A sociedade considera negativamente a violência em todas as suas formas. Nenhum Homem moderno pode, hoje em dia, aceitar a ideia de um deus que pune com os tormentos eternos àqueles que não obedecem às sua ordens arbitrárias. No nosso direito, eliminou-se a tortura e procurou-se reduzir ao mínimo os sofrimentos dos culpados. A nossa sociedade eliminou as formas mais brutais de abusos, eliminou o duelo e as vinganças privadas. Combateu as doenças e as dores físicas e mentais. Defendeu as crianças, os velhos e os doentes, protegendo-os com uma rede de direitos. Combateu os preconceitos raciais e as discriminações étnicas. É certo que estas coisas ainda existem, mas são condenadas e combatidas como nunca o foram no passado.

A nossa sociedade favoreceu a ciência, o conhecimento objectivo; difundiu a instrução, procurou estabelecer a equidade social, nivelando as diferenças mais agudas. Tornou-se mais compreensivos das necessidades dos outros, mais amáveis. Fez com que nos tornássemos mais conscientes em relação à natureza, à vida animal, ao nosso próprio planeta. Também não é verdade que não sintamos o dever. Sentimos como drama e dever a pobreza do terceiro mundo. Sabemos que é nosso dever acabar com a miséria, com a fome, com os desgastes provocados pelas doenças entre os povos.

Todos sabemos que é nosso dever dirigir o progresso técnico para um equilíbrio ecológico que garanta à vida às gerações futuras. Não sentimo-nos, de facto, para além do bem e do mal. Talvez sejamos hipócritas, mas damo-nos conta de que os desastres sociais e naturais são produtos do nosso egoísmo individual e colectivo.

In Francesco Alberoni e Salvatore Veca: O Altruísmo e a Moral, Lisboa, Bertrand Editora PP. 11-14.

COMO A CULTURA CONDICIONA O HOMEM


A cultura é coextensiva à humanidade: o facto de ser um ser “cultivado” é, para o Homem, um facto universal. Tal é a única e verdadeira definição de natureza humana: ela somente ascende à sua verdade e a sua realização no seio dum processo cultural. Entra na cultura, ou numa cultura, é assimilar, pouco a pouco, insensivelmente, sem por vezes o saber e o querer, não pedem o nosso consentimento – desde o nosso nascimento, senão desde a nossa concepção, a ordem e as regras dum sistema de valores. Há uma dimensão de passividade, não consciente, mesmo inconsciente, na educação na qual somo ao mesmo tempo sujeitos e objectos, porque ela é, em primeiro lugar, um facto social. Não escolhemos livremente o nosso nome, a nossa língua, o nosso real, as proibições, os valores e preconceitos que vão constituir pouco a pouco o quadro mental da nossa vida.
Toda a cultura é já, neste sentido constrangimento, limitação e formação, obrigação e exigência, aconselhamento e aprendizagem, formas mais ou menos dissimuladas de negação que condiciona toda a determinação. O resultado do que é hábito, o costume, a evidência que nos torna o arbitrário cultural aceitável, conveniente e dirigível. É nesta condição que se pode ser persa, mongol ou francês e aceitar essa condição com orgulho.
A cultura é nos, de qualquer maneira, natural e torna-se o nosso meio de crescimento e de educação. “dizei a um canibal” escreveu Montesquieu , “instruído desde a sua juventude para matar Homens fim de se alimentar da sua carne, que isso é uma acção injusta e que lhe basta voltar a si e procurar na sua consciência uma lei que proíba essa acção, e ele vos responderá ingenuamente que não encontra nada de semelhante e que os seus compatriotas são exactamente como ele. Será em vão que tentareis convencê-los. O exemplo e a educação apoderaram-se do seu espírito e apagaram as impressões naturais, às quais só vós o pretendeis conduzir, e que ele já não é capaz de reconhecer”
Como se efectua essa interiorização dos valores culturais? Que faz uma cultura fabricar os seus sujeitos? Como fazer um persa, um mongol, um francês, mas também um professor, um cortesão, um proletário, um usurário? Fazendo-os estar num sistema de signos e de significações.
Philippe Choulet: Nature et Culture; Paris, Quintette, PP. 37-40

PODE O PENSAR PESSOAL RECUSAR A HISTÓRIA?

Ainda que os Pensadores e Analistas tenham um pensamento pessoal, seria ilusório crer que estes poderiam levar a bom porto as suas análises sem a tradição. Como o analista é uma pessoa, um “eu” e o seu pensar só é legítimo sendo o seu próprio pensar. Toda a pessoa, porém, encontra-se inserida numa história que não é pessoal e que o indivíduo mesmo é que fez. Trata-se de uma inserção inevitável. Não pode-se, pois, começar a pensar do ponto zero, porque o que se pensa já foi pensado, e em tal pensamento foi escolhido. Somos levados pelos pensamentos da tradição, pelo menos porque falamos a sua linguagem e encontro-nos imbuído nos pensamentos encarnados nesta linguagem. Pensar sem linguagem é impossível; não menos possível é penar sem tradição.
Tudo isto não quer dizer que o analista precise abordar a pretensão de pensar pessoalmente. De maneira nenhuma. Ainda que levado pela história do pensamento, o analista é chamado a despertar seu pensamento para uma nova vida. Na análise trata-se sempre de uma experiência e expressão pessoal de riqueza do ser. Mas, é só porque outros nos procederam que nós podemos ver pessoalmente coisas perante as quais seríamos cegos. Se não tivesse existido Platão, a nossa compreensão da totalidade do real e o seu mais profundo significado seria meramente banal, superficial e material. Talvez não experimentássemos a riqueza da totalidade do ser, não a víssemos nem a compreendêssemos como a conhecemos, como a concebemos agora ao pensar critica, analítica e sinteticamente a realidade.
Se não fosse, por exemplo, Santo Agostinho, talvez não percebêssemos o sentido da inquietação no nosso ser no mundo. A Charles Darwin, Karl Max e Singmund Freud todos devemos a nossa vitória sobre o espiritualismo exagerado. Os grandes pensadores do passado falam-nos a fim de nos permitir uma experiência pessoal da realidade, tornando-nos sensíveis à riqueza na sua totalidade do que ela é. Há clássicos entre os filósofos, a saber, aqueles que ninguém toma a pé da letra e com os quais tem a ver cada um que pensa de um modo realmente pessoal, porque a sua visão continua frutuosa e inspiradora.
“Você é cartesiano ou não?”, alguém perguntou certa vez. Aparentemente, a interrogação, em si, parece não tem sentido. Quem poderia permitir não ser cartesiano? Essa frase significa que Descartes não viu nada, como Descartes o foi, mas ele pertence ao número dos clássicos, precisamente porque os que são cartesianos podem permitir isso graças ao seu melhor modo de ver, tornado possível pelo próprio Descartes. Platão, São Tomás de Aquino, Descartes, Max e outros, todos os verdadeiros grandes vivem, dum ou doutro modo, ainda entre todos nós. Eles continuam a falar-nos e a inspirar-nos, não obstante as suas expressões explicitas (...).
Não nos escandalizamos mais com a existência de muitos e contraditórios sistemas. Pouco importa o sistema. O mesmo tem valor é a realidade. E em cada sistema há a expressão de alguma realidade. Todo o pensamento verdadeiramente grande foi atingido por haver captado um determinado aspecto do real.
Todo o pensar pessoal está imbuído num determinado contexto histórico, ideológico, cultural, religioso. O pensar não pode recusar a história.

Acção Humana, Emílio Jovando, 2003

sexta-feira, 16 de maio de 2008

OMC E OS PAÍSES EM VIA DE DESENVOLVIMENTO


Para os PVDs, a OMC é o palco ideal para pressionar os PDs para a liberalização dos respectivos mercados nos sectores que mais lhes interessem. A Agenda para o desenvolvimento de Doha surgiu como uma oportunidade especial de retirar milhões de pessoas da pobreza e criar novas oportunidades económicas para os menos beneficiados e alarga-las para milhões de outras pessoas, através do aumento dos fluxos comerciais de bens e serviços agrícolas e industriais.

Os objectivos da Ronda de Doha, a Ronda do desenvolvimento, foram no sentido do comércio justo e do desenvolvimento. Estes deviam ser pautados pela abolição das barreiras pautais e não pautais ao comércio de bens e serviços. As ajudas financeiras visariam a facilidade do acesso ao mercado, sobretudo, o dos bens agrícolas, para estimular o desenvolvimento através de fluxos comerciais. Os objectivos visavam reduzir os subsídios agrícolas, especialmente dos que distorcem o comércio e PDs abririam mais os seus mercados, uma vez que se manifestou imperioso intensificar o comércio Norte/Sul.

Contudo, a ronda de Doha fracassou e os 145 países, membros da OMC decidiram, em 27 de Julho de 2006, congelar oficialmente as negociações para liberalizar as trocas comerciais, bloqueadas pelas rivalidades, aparentemente intransponíveis, entre as grandes potências económicas. Por isso, torna-se imperioso repensar as regras da OMC tais como, todas as decisões terem de ser tomadas por unanimidade, por isso, teoricamente qualquer membro pode bloquear uma decisão ou a regra do single undertaking, ou seja, “há acordo sobre tudo ou não há acordo sobre nada”.

Junto a isso, é importante cria um novo enquadramento para ajuda técnica ao comércio para os países menos desenvolvidos, para além de procurar propostas específicas sobre o tratamento diferencial especial e melhorar o sistema de resolução de conflitos para que os PVDs os possam utilizar mais facilmente.

Urge uma necessidade de união rápida dos PVDs em prol de políticas autónomas de desenvolvimento, fazendo uso, se for preciso, de políticas proteccionistas que visem um equilíbrio face a competitividade internacional. Uma alternativa para a consecução de tais medidas passa por uma acção coordenada por parte destes países para transfigurar a OMC e a ordem comercial actual.

De certo, a OMC, enquanto palco de resoluções de questões comerciais, justifica a sua existência através de sérios avanços na regulamentação do comércio internacional. No entanto, a neutralidade das suas acções nas questões de inclusão dos PVDs e nos temas de desenvolvimento global, evidencia o isolamento das nações em vias de desenvolvimento, sobretudo, no que refere a sua luta por maior representação e igualdade no comércio internacional.

São principalmente os PVDs que têm maior necessidade de um sistema equitativo e justo, em que possam participar no comércio internacional, tendo como base a maior igualdade possível, a nível de oportunidades. A recomendação da IV Conferência Ministerial da OMC, realizada em Doha (Qatar), é precisamente a de prestar atenção especial às necessidades de desenvolvimento dos países mais pobres, e a OMC tem o dever de cumprir esta recomendação, de modo a que o comércio beneficie os povos, e não apenas os mercados e as economias (PDs).

Aquando da criação da OMC em 1995, a substituir o GATT, os PVDs esperavam que ela se tornasse palco principal para que as suas economias pudessem questionar as barreiras ao seu desenvolvimento. De facto, o Órgão de Solução de Disputas da OMC é um dos únicos tribunais internacionais que podem obrigar os países a seguir suas decisões. Para os PVDs essa seria a oportunidade para finalmente poderem enfrentar os PDs em pé de igualdade, pelo menos diante das regras da OMC.

“Na verdade, os resultados foram mistos para alguns países em desenvolvimento (os mais avançados) e um desastre total para outros (os mais pobres) e o balanço final é claramente negativo, incluindo a redução das opções de modelos de desenvolvimento” Namburete (2005: 83-84).

De facto, seis anos após a criação da OMC (2001), a situação é bastante distinta. Das 220 disputas que foram levadas à OMC apenas 56 foram de iniciativa dos PVDs e nem em todas elas saíram vitoriosos. Pois, como afirmam alguns analistas, “não bastam regras para entrar com um caso contra um país rico. Muitos governos sequer possuem treinamento para actuar na OMC e não contam com verba suficiente para pagar advogados que defendam um caso” Baima (2001:1).

As principais reclamações dos PVDs fase a actuação da OMC têm a ver com algumas regras em vigor na organização que beneficiam os PDs em seu detrimento. Um dos exemplos práticos é o das regras para o financiamento das exportações de produtos industriais que foram elaboradas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), grupo dos países ricos, e que foram apenas importadas para a OMC aquando da sua criação e aos quais os PVDs passaram automaticamente a estar vinculados devido o principio do single undertaking.

Segundo Namburete (2005: 84 -85), a maioria dos PVDs aderiu aos acordos da OMC de boa-fé, acreditando nas promessas de apoio dos parceiros mais desenvolvidos. Ao aceitar estes acordos sem terem participado activa e conscientemente na sua elaboração ou negociação, os PVDs abriram o caminho para a sua própria marginalização. Hoje, não lhes resta outra alternativa senão permanecer e lutar pelos seus interesses a partir de dentro da Organização pois, durante a Ronda do Uruguai (1994), a OMC criou mecanismos tais que constituem garantias de que mesmo que num país haja mudança de governo tais políticas não possam ser alteradas. É justamente aqui onde reside a génese da marginalização dos PVDs na OMC.