sábado, 17 de maio de 2008

PODE O PENSAR PESSOAL RECUSAR A HISTÓRIA?

Ainda que os Pensadores e Analistas tenham um pensamento pessoal, seria ilusório crer que estes poderiam levar a bom porto as suas análises sem a tradição. Como o analista é uma pessoa, um “eu” e o seu pensar só é legítimo sendo o seu próprio pensar. Toda a pessoa, porém, encontra-se inserida numa história que não é pessoal e que o indivíduo mesmo é que fez. Trata-se de uma inserção inevitável. Não pode-se, pois, começar a pensar do ponto zero, porque o que se pensa já foi pensado, e em tal pensamento foi escolhido. Somos levados pelos pensamentos da tradição, pelo menos porque falamos a sua linguagem e encontro-nos imbuído nos pensamentos encarnados nesta linguagem. Pensar sem linguagem é impossível; não menos possível é penar sem tradição.
Tudo isto não quer dizer que o analista precise abordar a pretensão de pensar pessoalmente. De maneira nenhuma. Ainda que levado pela história do pensamento, o analista é chamado a despertar seu pensamento para uma nova vida. Na análise trata-se sempre de uma experiência e expressão pessoal de riqueza do ser. Mas, é só porque outros nos procederam que nós podemos ver pessoalmente coisas perante as quais seríamos cegos. Se não tivesse existido Platão, a nossa compreensão da totalidade do real e o seu mais profundo significado seria meramente banal, superficial e material. Talvez não experimentássemos a riqueza da totalidade do ser, não a víssemos nem a compreendêssemos como a conhecemos, como a concebemos agora ao pensar critica, analítica e sinteticamente a realidade.
Se não fosse, por exemplo, Santo Agostinho, talvez não percebêssemos o sentido da inquietação no nosso ser no mundo. A Charles Darwin, Karl Max e Singmund Freud todos devemos a nossa vitória sobre o espiritualismo exagerado. Os grandes pensadores do passado falam-nos a fim de nos permitir uma experiência pessoal da realidade, tornando-nos sensíveis à riqueza na sua totalidade do que ela é. Há clássicos entre os filósofos, a saber, aqueles que ninguém toma a pé da letra e com os quais tem a ver cada um que pensa de um modo realmente pessoal, porque a sua visão continua frutuosa e inspiradora.
“Você é cartesiano ou não?”, alguém perguntou certa vez. Aparentemente, a interrogação, em si, parece não tem sentido. Quem poderia permitir não ser cartesiano? Essa frase significa que Descartes não viu nada, como Descartes o foi, mas ele pertence ao número dos clássicos, precisamente porque os que são cartesianos podem permitir isso graças ao seu melhor modo de ver, tornado possível pelo próprio Descartes. Platão, São Tomás de Aquino, Descartes, Max e outros, todos os verdadeiros grandes vivem, dum ou doutro modo, ainda entre todos nós. Eles continuam a falar-nos e a inspirar-nos, não obstante as suas expressões explicitas (...).
Não nos escandalizamos mais com a existência de muitos e contraditórios sistemas. Pouco importa o sistema. O mesmo tem valor é a realidade. E em cada sistema há a expressão de alguma realidade. Todo o pensamento verdadeiramente grande foi atingido por haver captado um determinado aspecto do real.
Todo o pensar pessoal está imbuído num determinado contexto histórico, ideológico, cultural, religioso. O pensar não pode recusar a história.

Acção Humana, Emílio Jovando, 2003

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